Para sempre mulas de burguês

Se tem uma coisa que me indigna é observar nas ruas e em outros locais públicos e privados o povão fazendo virar verdade aquilo que através da mídia preconizam. O mundo pensado para o pobre pelos burgueses.

Eu me lembro de quando estreou a telenovela “Escrava Isaura” na TV Globo. Era o ano de 1976. Havia um programa de auditório aos domingos, provavelmente com o Moacyr Franco, e nele foi apresentado o elenco. Todos esperavam a aparição da atriz que ia fazer o papel principal, esperavam que fosse uma mulher negra. Minha primeira e incompreensível surpresa estava aí.

Depois vieram os capítulos da telenovela. Rapidamente, Lucélia Santos virou uma espécie de namoradinha do Brasil. Branquinha, suave, meiga, angelical. A inocência em pessoa. Era assim que a atriz era vista no meio em que eu circulava.

Uns dois anos mais tarde, na TV Tupi começou a passar uma sessão de pornochanchada brasileira chamada “Sala especial”. Audiência garantida na sala de estar das casas da rua onde eu morava. Os garotos, saindo dos treze anos de idade, viraram notívagos. Persistiam acordados até as onze horas da noite para verem, escondidos dos pais e irmãos mais velhos, peitos, nádegas e pentelhos das principais atrizes que atuavam no Brasil. Muitas delas eram estrangeiras, diga-se de passagem.

E numa das noites em que eu bravamente resisti ao sono tentador de sexta-feira, vi um filme em que Lucélia aparecia semi-nua. Uma cena em que jovens dentro de uma mansão se divertiam em uma piscina.

Para mim foi um choque. Nunca pensei que aquela pessoa meiga e angelical que conheci sofrendo nas mãos de um senhor feudal fosse capaz de tamanha exposição em película, tamanha indecência. Abalou-me profundamente, sem eu entender direito o porquê. Tipo: tirou-me a paixão ou a confiança em quem eu de repente sonhava um dia conhecer alguém parecido e findar um grande e inabalável romance.

No sábado seguinte, meus amigos todos comentaram a cena. A maioria era da minha idade, mas, parecia mais informada do que eu. Mesmo todos nós frequentando os mesmos antros. Tendo aquelas dificuldades que naqueles tempos militares havia e que narrei minuciosamente no livro “Os meninos da Rua Albatroz“. Um dos mais espertos deles, que recebia informação boa de seus irmãos já maiores, associou a libertinagem que me chocou à coisa corriqueira do meio artístico.

E tudo aquilo que nos metia medo e que vivíamos a evitar trafegar no caminho foi também associado. Drogas, orgias, satanismo, obscenidade, tatuagem, anarquismo – se fazendo passar por comunista por puro modismo -, homossexualismo. Tudo isso virou coisa de artista. E nesse momento, meu respeito e admiração por qualquer artista se extinguiu. E abruptamente me vi obrigado a amadurecer. Sinceramente digo: o mundo sem a minha inocência ficara pior.

Mas, eu fiquei mais observador. E notava que a classe artística, olhando não só pela estirpe dos membros, mas, também para o histórico pessoal, genealogia e etc., era majoritariamente formada por burgueses – filhos de magnatas, gente de berço – ou pelos amigos que eles selecionavam para poder estar até certo limite entre eles – os mulas nobres. Já naquela época, burguês era gente que nunca ia ter problema com nada e que podia fazer o que quisesse, mesmo havendo suposta censura, pois seus pais ou padrinhos estavam por trás dos generais.

Ou seja: gente como eu e meus colegas jamais seria como eles. Por mais que a gente os devotasse. Jamais passaríamos de contribuintes. Compradores de revistas masculinas, pagadores de bilhetes para ver filmes no cinema, audiência da programação das madrugadas da televisão.

Em pouco tempo isso foi nos cansando, nos esfregando verdades na cara e nos fazendo nos sentir impotentes, medíocres, os paga-pra-ver os outros desfilarem suas vidas de pessoa de sucesso. Isso nos indignava ao mesmo tempo que punks gritavam pra gente ouvir “do it yourself“. A gente até procurou aprender a ler inglês. Isso os burgueses não queriam que a gente aprendesse, mas, estávamos rebelando, não?

E a partir daí, a minha turma da infância e adolescência, não só os meninos, passou a buscar mais a fazer a sua história e a ver menos TV e ler menos revistas.

Creio que essa real bateu em grande parte dos jovens que sofreram essa espécie de epifania em todo território nacional. E isso deve ter sido percebido por aqueles que simplesmente administravam a população. Foi aí que começaram a trazer para o nosso mundo o admirável mundo deles. O cotidiano do pobre passou a ser o espelho do do rico.

O primeiro lixo do meio bem abastado de dinheiro que jogaram pra gente engolir foram as drogas. Maconha e cocaína o de praxe. Mas, naquele primeiro momento era possível eu ver perto de mim alguém portar LSD. Ou seja: A droga chegou ao pobre por uma necessidade dos ricos. E é mantida até hoje por causa disso. Eu sei, eles falam que combatem e que estão preocupados com a violência e com a nossa saúde! Por um lado saiu do controle deles e há gente pobre ganhando o dinheiro que eles pensam que deveria ser deles e houve quem despertasse mentes cantando “Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês“.

Depois veio o resto da cultura deles e hoje a gente nem consegue saber o que é fenômeno oriundo do meio miserável e obediente e o que é produto de viabilização mercadológica promovida por burgueses. O grande exemplo dessa dúvida que vemos hoje em dia é a cultura inerente ao mundo do funk. Você não acha que esses MCs têm inteligência suficiente para sozinhos, sem qualquer mãozinha branca interessada de burguês, serem capazes de fazer um movimento massivo acontecer, chegar à televisão, influenciar a baderna em massa como influencia, acha? Falamos sobre isso em outra postagem, com mais detalhes para você refletir se sim ou se não.

E o que carcome a sociedade atualmente chamam de cultura de massa em vez de cultura massificada. Afinal, foi isso que aconteceu: artificialmente massificaram a cultura que os interessavam, que dá lucro e mantém as coisas no lugar, com rico mandando em pobre. Mandam até em quem a gente deve votar. É bem capaz de um Geraldo Alckimin ganhar essa eleição presidencial que vem aí só por causa dessa herança maldita. Já estão articulando pra isso.

Você que leu o livro “Os meninos da Rua Albatroz” deve ter sentido que este texto resume bem o que é discutido no livro. E dá o clima também!

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