PÂNICO NO CENTRO DA CAPITAL
Uma agência bancária na Rua Espírito Santo, no centro de Belo Horizonte, estava tomada por assaltantes armados. Aos caixas foi dada a ordem de recolher o que havia em suas gavetas e colocado em um saco de pano o que fosse encontrado. Uma jovem loura, bonita, conduzia a operação a la Patty Hearst. Parecia ter os mesmos dezenove anos que tinha a modelo, filha de um magnata da comunicação dos Estados Unidos, quando foi sequestrada pelo grupo paramilitar que queria implantar o socialismo naquela nação, o Exército de Libertação Simbionesa. Assim como Patty, a loira aparentava ter passado por processos de controle mental. Provavelmente acometera-se também da Síndrome de Estocolmo.
A CIA cometeu um grave erro quando permitiu que vazassem e chegassem ao público os métodos que desenvolvera em Ravencraig, Montreal, com a ajuda do Dr. Ewen Cameron. Eram táticas para serem usadas só por exércitos em guerras psicológicas. Mas, muitos grupos guerrilheiros tiveram acesso às informações e passaram a aplicar os mesmos métodos desenvolvidos no Canadá nas pessoas que sequestravam. Intencionavam arrancar delas cooperação em suas lutas armadas.
Os doze homens envolvidos no assalto fizeram de reféns funcionários e clientes do banco. Homens e mulheres foram colocados deitados no chão, bem no meio do salão da agência. O clima de tensão chegava ao lado de fora. A polícia evacuou a área. O quarteirão formado pela Rua Espírito Santo, a Av. Amazonas e a Rua Carijós estava cercado de policiais preparados para capturar os membros do grupo terrorista. Um negociador usava um megafone. Todo cuidado era pouco para que não se configurasse vítimas fatais. A saída dos ladrões de banco estava restrita a negociações.
Do lado de dentro, um quarteto vigiava a entrada da agência. Uma tentativa incauta de invasão da polícia os obrigaria a fazer disparos com suas submetralhadoras contra os invasores. A distância guardada assegurava o fracasso de escudos e coletes protetores que viessem a servir de encorajamento para quem ousasse entrar. Estavam bem servidos de munição os agentes do grupo armado.
A operação de recolhimento nos caixas se encerrara. Quatro homens seguiram o gerente e seu assistente, que foram forçados a visitar e a abrir o cofre da agência. Lá, mais cruzeiros foram despejados em sacos verdes escuros, maiores e com prendedores de pressão, que foram abertos. Os próprios bancários os enchiam tendo à suas vistas os canos dos fuzis e metrancas que aproximavam e afastavam de seus rostos sob o comando de seus empunhadores. Os mesmos ofereciam um olhar firme e furioso a cada vez que faziam com as armas o movimento frenético e intimidador.
A bela jovem, única mulher na operação de roubo, coordenava o que faziam os demais operadores no hall de entrada da agência. Não pronunciava uma só palavra e mantinha o semblante em estado de transe permanente. A hipnose que sugeria seu olhar contagiava até mesmo os reféns, então vítimas do trauma que sofriam.
Uma mulher grávida de seis meses reclamou de dores e performou-se com isso uma possibilidade de fracasso do crime em andamento. A loura hipnótica a confortou como uma mãe. Dócil, meiga, carinhosa, ela passou, ajoelhada junto ao corpo da gestante, tranquilidade e consolo para a mulher indisposta. Seu comportamento foi interpretado a princípio como o de quem estivesse a realizar uma barbaridade em favor dos que ali estavam jogados ao chão aguardando o desfecho do acontecimento. Convenceu-se, a gestante, que seus sequestradores sabiam o que faziam e não iriam lhe fazer mal. A síndrome de que era portadora a meliante adolescente fazia novos enfermos em tempo recorde. A letargia da aguardante tomou a cena.
Voltou da área do cofre a turma que se deslocara para lá. O gerente e o seu assistente foram ordenados a deitarem-se no chão no meio da sala, juntos aos outros que ali já estavam. O plano dos terroristas passou a ser a operação de fuga. Também já estava prontamente arquitetada. Entrou em cena um bigodudo com cara de cigano e um barba rala com sotaque espanhol. Barbas, bigodes, boinas e óculos escuros eram os únicos artefatos que dificultariam a identificação dos assaltantes no futuro. Exceto a linda jovem que lhes acompanhava, é claro. Esta entrou e saiu da ação de cara limpa. No máximo, poderia estar a usar peruca.
À porta do prédio, na esquina da Rua Espírito Santo com a Carijós, lado contrário ao Edifício Pedro Dutra, próximo do primeiro degrau do alto da escadaria e com as mãos segurando uma metralhadora em prontidão de disparo, Bigode observava de cima os policiais do Kilo, peritos em ações contra roubos de banco, para os quais o bandido Lúcio Flávio Villar teria dito, na decorrência de sua prisão no Parque Municipal de Belo Horizonte, “Bandido é bandido, polícia é polícia, como a água e o azeite, não se misturam”. Havia dois anos o fato.
Com o tom de voz denunciando um nervosismo que tentava ser controlado, Bigode apresentou aos homens do Kilo seu plano de fuga. Haviam três automóveis estrategicamente estacionados na própria Rua Espírito Santo. A polícia já havia suspeitado do longo abandono dos veículos. Eram os únicos que sobraram além das viaturas depois que a área foi esvaziada. Pensaram em esvaziar os pneus, mas desistiram.
Os bandidos saíram da agência carregando, cada par deles, um refém. O primeiro quarteto, que contava com a mulher do bando nele, tomou o primeiro carro, um Corcel azul. Conferiram os pneus antes. Não estavam esvaziados. Entraram os marginais e apenas um de seus dois reféns. O outro correra desesperado para o outro lado da rua, juntou-se aos policiais e se sentiu a salvo. O mantido preso seria deixado em local que seria conhecido da Polícia através de telefonema anônimo dado para a imprensa logo que fosse possível ele ser liberado. Para não dar bandeira, eles não revelaram qual seria o órgão de imprensa a ser comunicado. Era a garantia de que não seriam seguidos de maneira a dificultar a fuga. A mesma tática de ocupação fora empregada para os outros dois veículos, sendo que a maior dificuldade ficou para o terceiro, que levara Bigode e o gringo.
Deixaram a Rua Espírito Santo cantando pneus e sem importar com regras de circulação. Os carros que vinham legalmente na contramão tiveram que parar. Da Espírito Santo desceram a Amazonas, subiram a Bahia e viraram à esquerda na Rua Carijós. Entraram na Avenida dos Andradas sem atravessar o Ribeirão Arrudas. Com muita perícia, os três motoristas contornaram, quase colados um no outro, a Praça Ruy Barbosa e voltaram para a Rua da Bahia. Do alto do Hotel Itatiaia, curiosos os viram passar e entrar na Caetés.
Das janelas do bem afamado Hotel Sul Americano hóspedes observavam a fuga. Formavam, na parte de esquina do edifício Aurélio Lobo, junto com os afrescos da construção neoclássica, uma espécie de adorno que melhorara o registro dos fotógrafos de plantão nos lambe-lambe da Praça Ruy Barbosa. E reduzira bastante a tensão do episódio. Alguns dos que observavam paisagens tentavam consultar, precariamente, as horas no relógio prontificado entre estátuas de ninfas esculpidas com as mãos no ventre e na cabeça, posicionado abaixo da cúpula do prédio da Estação Ferroviária. Os ponteiros do primeiro relógio público de Belo Horizonte marcavam algo por volta das onze horas da manhã. Havia, entrementes, os que miravam as águas turvas do Arrudas tomarem o rumo da já quinquênia Estação Rodoviária. E os que apreciavam a beleza desleixada da Praça Ruy Barbosa, ruína que era amenizada pela imponência do prédio da então RFFSA, que substituíra a Central do Brasil e herdara o controle da antiga porta de entrada dos materiais que foram usados na construção da cidade a partir de 1897, dividiam o interesse entre contemplar, ao horizonte, o viaduto que ligava o centro ao bairro Floresta, o Arthur Bernardes, ao lado da magnífica construção clássica, ou o movimento de carros e transeuntes logo abaixo de seus narizes.
As viaturas dos militares não tinham a mesma desenvoltura que tinham os carros que elas perseguiam. Os policiais seguiam palpites sobre o itinerário que intencionavam fazer os condutores em fuga. A maioria delas subiu a Amazonas para esperá-los tomar a pista certa da Avenida Afonso Pena que levava para a zona sul da cidade. Na da contramão fizeram uma barricada contando com ônibus que desciam dos bairros Serra, Santo Antônio e Sion. O da linha Avenida soltava uma enorme fumaça negra que saía do cano de descarga vertical situado atrás do veículo, a qual cobria a visão dos motoristas e enchiam de fuligem os prédios. A saída para o Rio de Janeiro através da BR3 era muito utilizada por grupos terroristas. Daí a opção pela estratégia de cercar onde cercavam.
Outros carros da Polícia continuaram na Avenida Amazonas e foram armar cerco na Praça Raul Soares para que o rumo dos transgressores não fosse a Raja Gabaglia ou a Praça da Liberdade para ter acesso à BR3. No mês de junho o prefeito de BH havia autorizado por ali a doação de um terreno para a construção do quartel da 4ª Divisão do Exército. Ainda com o assalto a banco em andamento eles haviam se posicionado na Avenida Bias Fortes e na Olegário Maciel, perto da sede e do campo do Clube Atlético Mineiro.
Próximo ao Edifício JK, os homens do Kilo, imaginando poder se tratar da volta do COLINA, ficaram de prontidão, pois o grupo terrorista possuía aparelhos em Contagem. O ponto em que estavam era o caminho principal para o município. Mas, o que não esperavam era o que os fugitivos levando seus reféns fizeram. Da formosa Rua Caetés, reduto de classe em outras épocas, eles passaram em frente aos estabelecimentos de comerciantes árabes, sírios e libaneses, atingiram a altura do imponente prédio clássico do antigo Banco do Comércio e Indústria de Minas Gerais, pegaram a pista da Afonso Pena sentido Lagoa da Pampulha, sem viaturas os perseguindo, subiram o Viaduto B e tomaram a Avenida Antônio Carlos.
Pessoas transitavam pela Rua Caetés e se absorviam diante ao esplendor da arquitetura que unia o neoclássico com o art decó e outros estilos mais modernos, enquanto a via era feita de atalho para fuga. Alguns pedestres subiam a Avenida Amazonas e atravessavam a Praça 7 sem se dar conta do acontecimento. Iam sem pressa ladeira a baixo, deixando para trás prédios, ruas e lojas até se depararem com a Praça Raul Soares, onde estavam policiais à espera de obter êxito em uma missão de detenção.
Na esquina da Avenida Amazonas com a Rua Curitiba, outros pedestres tomavam destinos múltiplos. Permaneceriam por ali os que pretendiam comprar produtos exóticos no Mercado Central, o galpão construído em frente à Secretaria de Saúde, que ficava na Avenida Augusto de Lima, sob esforço dos próprios comerciantes, que nele expunham produtos alimentícios e artigos religiosos, o qual era uma atração da capital mineira.
Quem não fazia esse trajeto entrava na Avenida Afonso Pena e escolhia o rumo a tomar ao se vir diante à complexa bifurcação traçada pela Praça Sete de Setembro. Fartos de ouvirem os engraxates gritarem “Olha o lustro americano, passa tinta, passa pano, dá brilho, passa graxa”, cegos oferecerem bilhetes da Loteria Mineira e jornaleiros o “Diário da Tarde”, uns boicotavam a partida para a Rua Carijós em direção à Avenida Paraná e rumavam para a zona Sul da cidade, passando pelo Cine Brasil, Banco da Lavoura, Othon Palace Hotel, Edifício Acaiaca, Cines Metrópole e Regina, Teatro Francisco Nunes, Palácio das Artes, Avenida Carandaí. Outros desciam em direção a Lojas Americanas, ao Hotel Financial ou aos edifícios Mesbla e Minas Brasil, até acessarem a Praça Rio Branco e nela decidir o que fazer. O melhor seria seguir para a rodoviária para comprar uma passagem para algum lugarejo no interior de Minas Gerais, dos mais próximos, e passar o fim-de-semana no sossego, despoluindo-se da agitação do meio urbano, que já levava à exaustão os moradores de Belo Horizonte. Olhar para trás apenas para se despedir dos prédios era a inspiração que vinha. Quem sabe o enorme dragão verde da loja Embrava, desenhado num deles, responderia ao aceno.
Entre oitis, quaresmeiras, ipês e sibipurunas, que predominavam dentre a arborização viária, os que transitavam conferiam as restaurações que a Plambel iniciara no centro da cidade havia dois anos, quando a secretaria de planejamento fora criada. Desde o ano passado, ela podia contar com a EBTU, empresa nacional instituída para dar suporte ao trânsito. A Cemig e a recém-criada Copasa auxiliavam na implantação ou reparos na rede de energia elétrica e na hidráulica.
Na Lagoinha, os fugitivos ainda fizeram que fossem pular canteiros centrais para ir para o lado do bairro Bonfim ou para o lado do túnel, que piscava incessantemente por causa da movimentação de automóveis entrando e saindo da penumbra. Se ainda os estivessem seguindo ficariam confusos os perseguidores. Seria a ideia que eles mantinham voltar para o centro tomando o caminho da Avenida do Contorno, Elevado Castelo Branco e Avenida Pedro II e ir para Contagem pela Avenida Catalão, ou seria o destino alguma localidade para o lado da histórica Sabará, município no itinerário do Túnel da Lagoinha?
Os motoristas consultaram os retrovisores internos. Os letreiros luminosos apagados em cima dos arranha-céus junto com o vai e vem dos carros nos dois viadutos que ligavam a zona Norte ao Centro de BH sugeriam estar tudo em ordem. Deixaram para trás o santuário de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, o Mercado Popular, onde comerciantes agrícolas faziam seus negócios naturalmente, e os andares cheios de corredores externos da faculdade FAFI, de onde se via estudantes dar voltas em busca de suas salas, provavelmente para fazer pesquisas.
Redobraram a atenção ao passar pelo Departamento de Investigação. Fizeram o sinal da cruz diante a Igreja de São Cristóvão para que todos os detetives da Civil estivessem os esperando na direção contrária. O foco da instituição no ano era o combate ao tráfico de entorpecentes e até haviam inaugurado a Divisão específica, mas não era bom vacilar. Avançaram Conjunto IAPI à frente.
Ainda que com algum sufoco, a ação do bando foi bem sucedida. Não houve troca de tiros com a polícia. Até à altura do ponto que estavam, ninguém saíra machucado. Da Lagoinha eles fizeram o corredor da Avenida Antônio Carlos. Ao passar pela Mila Veículos e pelo hospital Santa Mônica, eles leram “Cão Fila Km 21” pichado num muro perto da fábrica da Refrigerantes Del Rey. Tinha cara de mensagem de subversivo para subversivo, mas era só um criador de cachorros de São Paulo querendo divulgar de modo barato seu negócio.
Um dos carros quase bateu em um ônibus da Transoto que fazia transporte para a Cargil. O amarelo e preto da pintura lateral da carroceria Carbrasa só foi enxergado pelo motorista do Fusca verde quando este beijou o pára-choque do ônibus. Foi só um susto. Só aconteceu porque ao passar pela BR262 os subversivos temeram uma barricada armada na altura da unidade do Corpo de Bombeiros. À guarita, junto ao canhão de enfeite na entrada do Colégio Militar, havia quem pudesse pedir para pararem os veículos. Ninguém pediu. A estrada não estava bloqueada.
UFMG, fábrica da Brahma, Av. Abraão Caram, subida para o Mineirão. Pela janela dos veículos em correria os destaques do percurso viravam névoa. Lagoa da Pampulha à esquerda, aeroporto à direita, casa de dança. O ferro velho ao lado do Grupo Escolar José Heilburt Gonçalves poderia ter se tornado o paradeiro de quaisquer dos carros. Na pista que eles utilizavam havia outro ferro velho que continha a mensagem “Não beba / Não corra / Não mate / Não morra”. Mas dali eles passaram sem ter deixado de correr. Talvez algum dos motoristas tivesse bebido alguma coisa para encarar a ação. Ninguém matou, ninguém morreu.
Já avistavam um dos muros laterais que cercava a Lagoa da Janete no bairro Itapoã. Do outro lado da avenida que percorriam, a Pedro I, rapidamente surgiu o restaurante Frango Assado. A seguir viria, mas não com a rapidez que viera, a Vila Olímpica do Atlético Mineiro. A parte do clube que os penetras gostavam de usar para entrar de graça e curtir as piscinas, a sauna e as quadras de futebol de salão. Ao final da Pedro I, início da estrada MG10, Distrito de Venda Nova, os automóveis pararam num posto de gasolina e preencheram os tanques. Não tiveram problemas com os sequestrados. Eles agiam como se fossem complacentes com a causa do grupo, imaginando serem eles um bando de guerrilheiros boa praça e justiceiro como um tupamaro do Uruguai.
Os reféns utilizados foram deixados no local planejado, um ponto distante do Centro, indo em direção à Santa Luzia. Ao chegarem no trevo que levava a esta cidade, dois dos carros seguiram um caminho rural clandestino, tendo passado três dos passageiros para os outros veículos, enquanto o outro seguiu para o São Benedito, Baronesa, Frimisa, para depois de atravessar o Rio das Velhas e a Estação de Trem estacionar por um tempo no centro histórico mal cuidado de Santa Luzia.
Lá, os que continuaram o trajeto extraoficial, com muita dificuldade encontraram um telefone público. Inseriram nele fichas que eles já levavam consigo e cumpriram o trato de avisar para a imprensa onde haviam sido deixados os reféns que seguiram com os delinquentes. Não fizeram isso sem antes terem feito compras na cidade para levar para o alojamento o material e alimento adquiridos. Fizeram tranquilos a aquisição da guarnição, pois conheciam os comerciantes que tocavam os negócios na parte antiga da cidade barroquina. Os insurgentes cometeram um certo vacilo que poderia ajudar a localizar o aparelho onde se alojavam.