Desastres ocorridos com aviões carregando delegações esportivas, sobretudo do futebol, a gente gostaria que acontecessem jamais, mas, infelizmente, o trágico acidente envolvendo o clube brasileiro de Santa Catarina, a Chapecoense, não é inédito.
Eu era ainda um adolescente quando entrei em contato com a notícia da fatalidade sofrida pelo Torino, time italiano, que sucumbiu diante a um acidente aéreo em 1949. Embora eu visse fotos de matéria de arquivo de um jornal, eu ainda me recuperava da exposição às páginas da revista Manchete que cobriram o incêndio do edifício Joelma em São Paulo, que me deixaram muito impressionado e frágil para me expor a esse tipo de informação novamente. Posso dizer que por muito tempo eu procurei evitar tomar conhecimento de catástrofes, mesmo as naturais, por achar comovente e impressionante demais, mais do que eu podia suportar.
Eu era um cara apaixonadíssimo por futebol. Naquele tempo não havia oportunidade para se envolver com ódio dentro desse assunto. Pra se ter uma ideia, era possível dar atenção para fatos sobre o time rival ao que se torcia, cultuar seus jogadores, dividir, os torcedores, em alguns jogos, espaços comuns na arquibancada. E a imprensa esportiva era tão idolatrada quanto eram os atletas.
Mas, alguém com poder bastante não quis que isso tudo permanecesse assim. Cartolas, dirigentes de clubes e federações, patrocinadores, marqueteiros, jornalistas, veículos de comunicação. Alguém não quis que isso continuasse assim e achou que havia feeling vantajoso em despertar no torcedor emoções que fecundassem o ódio.
E o trabalho desse alguém me pegou. E diante aos sucessivos malogros do time que torço por ele, respectivos sucessos de seus rivais e provocações não só da imprensa esportiva, mas, de toda mídia, eu me transformei num débil mental. Um sujeito que cultivava pensamentos nada benevolentes contra o Cruzeiro, o Flamengo, equipes esportivas de imprensa, tendo como alvo principalmente o Galvão Bueno. Todos eram alvos de meus desejos mais insanos. Que incluíam acidentes aéreos os envolvendo. Igual ou pior ao que sofrera o time do Torino.
Isso durou algum tempo, até que o remorso por estar mantendo, mesmo que reconditamente e sem confissão, atitudes anti cristãs, por causa de uma bobagem, que é o futebol, observado pela ótica midiática e administrativa, me fez refletir a respeito e procurar uma solução. Decidi, como saída, tirar do meu coraçao a paixão que não me dava nada e ainda estava me matando. E de lá pra cá venho revezando entre manter o interesse pelo esporte, porém o comedindo, e opor-me ferrenhamente ao próprio, tentando apresentar motivos válidos para que as pessoas passem a cuidar melhor de suas vidas e não caiam nas garras daqueles que fizeram do futebol um tanque de guerra e uma máquina para se ganhar dinheiro manipulando mentes. No fundo, o que quero mesmo é trazer o futebol que havia na minha infância e adolescência de volta. O esporte apaixonante.
Mas, então, veio a interceptação trágica do voo 2933 da LaMia, que da Bolívia levava o time da Chapecoense e alguns jornalistas para a Colômbia, onde o Brasil teria a chance de faturar mais um título no futebol, no cenário sul-americano. O destino que Deus quis para 71 das 77 vítimas não foi o gramado e sim o céu.
A Chapecoense, um time catarinense de 43 anos, entraria de vez para a história do país. Mas não por protagonizar uma comovente história desastrosa. Ela poderia ser a campeã da Copa Sulamericana e entrar para um seleto grupo de clubes brasileiros campeões sulamericanos, no qual se encontra o time para o qual torço e seus maiores rivais. E aqueles jogadores, mesmo os veteranos, veriam o marco zero do sucesso de suas carreiras. Ganhariam chances em equipes de grande porte dentro do país e no mundo. Teriam o respeito da mídia, receberiam grandes salários, apareceriam em comerciais de televisão e programas de entrevistas seletivos.
E Chapecó e também o estado de Santa Catarina deixariam de serem vistos apenas como coadjuvantes no palco do futebol brasileiro, cujas histórias a grande mídia tece. Não viveriam seus quinze minutos de fama aqueles queridos jogadores apenas por terem sido vítimas de uma catástrofe. Como é próprio do trivial ingrato que essa grande mídia reporta sobre os que não fazem parte do eixo elitizado do futebol brasileiro e mundial.
O vôo 2933 da LaMia me fez perceber o que eu fazia comigo mesmo há alguns anos, deixando me levar pelo ódio que a parte maldosa da mídia implantava no torcedor. Me mostrou como seria para mim o dia seguinte se um acidente desse tipo tivesse ocorrido com os clubes que eu detestava. Como eu sofreria! Eu tentaria me matar. Me senti extremamente culpado agora por eu ter tido um dia esse tipo de pensamento.
Mas a mão de Deus é forte demais. Infelizmente veio a calhar um acontecimento como esse. Eu vi tanta solidariedade surgir em pró dos vitimados que eu nem poderia imaginar que o que existe mesmo é muito amor dentro deste esporte. Jamais o ódio que implantam irá conseguir superá-lo. Eu consegui ver que a vitória em qualquer campo é isto: ser capaz de ser companheiro, solidário, mesmo com o adversário. E isso está ao alcance de todos nós. Não só daquele que possui o melhor time ou as melhores qualidades. Que ganha o maior salário ou que tem a mídia a seu favor. Todos os que pensam em confortar o próximo, renunciar em favor dele, esquecendo qualquer diferença, na alegria e na tristeza, vence qualquer campeonato. Até mesmo sem disputá-lo.
Obrigado aos que tiveram que ir para me deixar essa lição e parabéns a todos os sobreviventes – que inclui-se nós mesmos – pela demonstração de carinho e de solidariedade, que me fizeram redescobrir o quanto sou apaixonado pelo futebol.
Por isso uma força me leva a cantar.
Por isso essa força estranha no ar.
Por isso é que eu canto e não posso parar.
Por isso: essa voz tamanha.
(Força Estranha. Caetano Veloso. 1978. Eu costumava cantar junto com a torcida essa música nas arquibancadas do Mineirão para celebrar minha devoção ao futebol. Na ocasião era possível ver atleticanos e cruzeirenses dividirem os bares fora e dentro do estádio; antes, durante e depois de uma partida entre os dois clubes.)